Cozinha

Entro na cozinha, fazendo tudo com menos pressa possível. Minha cabeça ia explodir a qualquer momento, tinha certeza. Luke estava ali, fazendo algo que minha amada cabeça não processou muito bem o que era.
Oi...
Minha voz saí horrível. Dou um beijo rápido nele e sento ao seu lado, roubando o copo de água que estava a sua frente. Tomo tudo de uma vez.
Lu... Sério... Eu estou péssima... Desculpa mesmo por ter feito você ir me buscar ontem, ou hoje, sei lá... Que hora era quando te liguei? E como eu estava quando você chegou? E, hum, eu te disse algo sobre a festa? Ou rolou alguma coisa entre a gente, por que, sério, não lembro de nada.
Deixo ele responder e coloco mais água no copo.
Desculpa, mas se eu fosse pra casa minha mãe ia me matar. E Ste ia me ver bêbada. Ela nunca me viu bêbada. Quero poupar ela disso...
Eu estava falando a verdade. Amava a minha irmã mais que tudo, mas ultimamente ela estava brava comigo por causa do nosso pai e... Ai. Minha cabeça dizia: não pense agora.
Tenho que estar na casa de Vic umas duas horas antes do casamento. Eu e Domi estamos cuidando da decoração... Que horas são?

Ele diz que não falei nada com sentido. Perfeito. Bella estaria morta em segundos assim que nos encontrarmos.
Daí ele fala que faltam duas horas para o casamento e eu engulo a água muito rápido. Engasgo e fico tossindo que nem uma louca. Quando finalmente passa, respondo:
Estou atrasada! Mas, mesmo assim... Não vou resistir a uma mesa de café da manhã as seis da tarde tão deliciosa...
Como de tudo um pouco, o que prova que eu estava com fome. 15 minutos depois estou de pé.
Vou passar em casa, trocar de roupa, ir pro chalé e ver como vão as coisas por lá. Se eu acordei essa hora, imagina a Vic... A gente se vê no casamento, padrinho gatão?
Pergunto, sorrindo e dando um último beijo nele, antes de sair correndo, com a cabeça explodindo.
Depois te devolvo o moletom!
Grito da porta.

Continua https://arestomomentum.forumeiro.com/t78p60-quarto-de-victoire

Essas recaídas aconteciam às vezes. Geralmente, quando eu achava que estava bem, parava de tomar os remédios e então aquela outra Alice, a mesma que gostou da ideia de se jogar da Torre Eiffel, tomava conta de mim. Os meus pensamentos vagavam, ideias loucas me passavam pela cabeça, por um momento não parecendo mais tão loucas assim. Ideias a respeito de me matar e ao bebê. Para minha sorte, nesses momentos de fraqueza, Luke sempre estava em casa, para conversar comigo. Ele seguia corretamente o protocolo, como o médico havia ensinado, falava de forma calma, tentava de tudo para me fazer pensar em outras coisas, e eu me acalmava, convencida por ele de que deveria voltar a tomar os medicamentos. E esses novos eram tão fortes, davam tanto sono, mas pelo menos funcionavam. Eu esquecia as ideias erradas, embora não voltasse a ter aquela animação necessária para sair do quarto. Sem os remédios a animação vinha junto das ideias. Não sei o que eu preferia.
Só que dessa vez aqui estava eu, sem tomar os remédios a dois dias, enfrentando uma recaída justo agora. Luke estava no trabalho, ou seja, nenhum obstáculo para me impedir. Andei até a cozinha, abri a primeira gaveta da bancada e peguei uma faca. Seria agora, finalmente.
Cinco meses.
O pensamento me faz abaixar a faca. Eu ia jogar cinco meses fora. Tinha aguentado cinco meses com o bebê e ainda não sabia o sexo. Acho que Luke sabe, o médico perguntou se eu queria saber e neguei, mas acho que ele aceitou. Eram cinco meses já. Passava devagar, mas Luke estava sendo perfeito e acho que, sem ele, eu não estaria viva. De novo, ele salva a minha vida.
Nós não estávamos namorando, apesar de ambos querermos isso. Ainda sentia como se fosse tudo uma grande obrigação para ele, embora ele insistisse que não. E nós discutíamos, muito, pelo fato de eu não querer sair de casa, por não estar comendo bem, por não ter vontade de fazer nada. Não chegavam a ser brigas, pois acho que Luke e eu nunca brigamos sério, eram só conversas, ele me convidando para sair, seguindo os conselhos do médico, e eu negando.
Cinco meses.
Eu jogaria tudo fora por Luke. Sabia que estava incomodando-o. Podia acabar com isso agora. Olho a faca na minha mão e levanto-a. Seria rápido, ela estava afiada, provavelmente nem doeria. Um simples corte corte fundo na parte interna do braço e fim. Queria ter me despedido, mas não havia tempo para isso.
Subitamente me senti em paz. Em alguns minutos tudo estaria acabado. Luke, minha mãe, Ste e Bella estariam livres de mim. Afinal.
Comecei o corte do pulso. Doeu. Teria que ser mais rápida. O sangue começava a jorrar.
Paz.
Paz.

Eu não lembro de nada depois dos cortes. Lembro somente de pensar que, finalmente, tudo estava acabado. Que agora estava tudo bem. E então nada. Paz.
Acordo com a cabeça doendo, me sentindo fraca, nos braços de alguém. Não preciso olhar para saber que é Luke. Eu simplesmente sei, pelo jeito como está mexendo no meu cabelo, pelos seus braços em volta de mim, pelo som da sua respiração. Olho com calma a cozinha ao meu redor. Há algumas coisas em cima da mesa, chocolates, frutas, balinhas, tudo que eu havia feito ele comprar e não havia comido. Eu tinha uma pequena vontade, comentava com ele e, apesar dos meus protestos, ele saía para comprar, mesmo sabendo que eu iria olhar aquilo e ficar enjoada na hora. Nas sacolas jogadas no chão têm alguns morangos, minha última invenção, agora eu só olhava para eles e me odiava por ter deixado Luke sair para comprá-los. Eu nunca gostei de morangos.
Levanto devagar, meus braços doem, minha cabeça me diz que não deveria ter me cortado. O quê? Ah, não. Aconteceu. De novo. Esfrego os pulsos e tomo coragem para olhar para Luke.
Desculpa.
Era o que eu sempre dizia depois de uma crise de descontrole. A diferença é que essa chegou bem longe. Desviei o olhar e consegui me levantar segurando em uma cadeira. Eu estava tornando a vida dele um inferno e sabia disso. Por isso fazia tanto sentido acabar com tudo, mas uma pequena parte de mim sabia que era errado. Puxei de um armário um dos meus remédios, desta vez sem Luke precisar falar nada. Tomei-o, sabendo que o sono viria a seguir, junto com a depressão. Parecia que os remédios tinham sempre o efeito contrário, mas o médico havia dito que era por que não podia me dar remédios mais fortes, por causa do bebê. E esses já eram fortes o suficiente para me derrubar. Deixo meu corpo cair em uma cadeira e, virando para ele, falo:
Sei que já tivemos essa conversa muitas vezes, mas agora é sério. Eu te amo, mas não podemos voltar a namorar. Você não merece de forma alguma nada do que eu faço-o passar.
Ele tenta me interromper, como sempre faz, mas desta vez eu não deixo-o falar.
Não... É sério. Era tão diferente nós dois juntos. E tudo mudou por culpa minha. Desculpa, mesmo. Acho que estou te devendo muitas coisas.
Aponto para a mesa, com todas aquelas coisas boas de comer, intocadas. E tento dar um sorriso, o primeiro de muitos meses. Mas ele sabia que não estava falando só disso. Conheço o caráter dele e sei que nunca vai querer um teste de DNA para descobrir se a criança é mesmo dele ou não. Só que eu faço questão de saber, devo essa informação a mim mesma.
Por isso eu vou embora daqui, Luke. Não faz sentido sua vida estar esse caos por minha causa. Eu... Eu vou voltar para casa, quer minha mãe queira ou não. Obrigada por tudo, você é o melhor homem do mundo e... Agora você está realmente livre. Nada do que disser vai mudar minha decisão.
O remédio começara a fazer feito. Tentei me levantar, começar a arrumar uma mochila, pois não tinha muita coisa para levar, mas caí de volta na cadeira. Cansada demais para levantar. Com os últimos pedaços que restavam do meu coração se despedaçando.

Sempre pensei que a melhor parte de namorar o editor chefe do Profeta era receber as melhores declarações de amor do mundo, as melhores cartas românticas, os melhores recadinhos, meio disfarçados, meio escondidos, entre as páginas do jornal. Agora sei que a pior parte de se namorar Lucian é exatamente a mesma. Quer dizer, não que estejamos namorando, mas ele sabe, como ninguém, falar as coisas que vão atingir o coração na certa. Que vão mexer com você. Não sei se é o jeito como ele coloca as palavras, o som da sua voz (sou meio suspeita, afinal, sempre amei a voz dele) ou aquele olhar no fundo dos olhos, onde parece que ele consegue enxergar a sua alma. Não sei, só sei que, quando ele parou de falar, eu já estava totalmente apaixonada de novo por aquele homem. Mas não podia me entregar dessa vez.
Eu sei que a vida dele mudou muito atualmente, a minha mesmo... Nem sei se continuo tendo uma vida própria. Para quê estou vivendo, afinal? Para os remédios, para o bebê, para minha mãe, para Lucian... Lucian. Não poderia me dar ao luxo de voltar a chamá-lo pelo apelido. Senão tudo voltaria. Eu precisava achar aquela Alice fria dentro de mim. Aquela que teve coragem de terminar com ele e dizer aquelas coisas horríveis. Não podia me dar ao luxo de voltar para minha casa. Não seria como antes, eu já não era a mesma, nada seria igual.
Tudo começava a ficar difícil. Os movimentos, respirar... Eu estava ficando sonolenta e cansada, tudo culpa do remédio. Só precisava de um pouco mais de tempo...
Levanto sem olhar para ele. Se eu não olhasse seria mais fácil. Fico meio tonta e ele prontamente me segura, é claro.
Solta. Eu estou indo.
Digo, soando decidida, e espero que ele tire as mãos de mim. Não queria isso, mas o amo tanto que só desejo uma vida normal para ele. Sem nenhum bebê, fraldas ou choro. Normalidade. Ele me solta devagar e eu deixo-o ali enquanto vou no seu quarto e pego algumas coisas minhas, junto com uma quantia em dinheiro que minha mãe havia enviado, para ajudar Lucian com as despesas da casa. Ele nunca havia deixado eu pagar nada. Agora tudo aquilo serviria, quem sabe para alugar um quarto, para sobreviver. Das poucas coisas que eu tinha, a maioria era remédios, e esses ficavam na cozinha. Quando volto para lá, Lucian está no mesmo lugar, parado, de costas para mim. Pego minha cestinha de medicamentos e coloco tudo na mochila. Coloco ali também algumas das balas e dos doces que ele tinha comprado para mim.
Eu... Acho que serei eternamente grata por você. Não importa o que Bella ou qualquer um diga, você sempre vai ser o homem mais perfeito do mundo, para mim. Eu nunca vou esquecer nada do que a gente viveu, porque foram os melhores anos da minha vida e, mesmo assim...
As lágrimas estavam caindo. Como vinham caindo tão abundantemente desde meu término com ele, no que parece agora, um século atrás. Lucian continuava de costas para mim e era melhor assim, se o visse, não conseguiria terminar.
Mesmo assim, eu torço por você. Milhões de garotas se matariam para ter um namorado como eu tive. E elas merecem uma chance, não acha? Eu preciso viver um pouco sozinha, achar uma razão para viver de novo. Minha vida não pára e me espera, o que é um erro. Mais de uma vez eu desejei que tudo fosse mais devagar... Até parar. Mas isso não acontece. E é um problema meu, você não tem nada com isso. Não me sinto bem privando-o da liberdade, apesar de tudo o que você diz. Lucian, eu... Meu Merlin, eu o amo tanto. Como nunca amei ninguém. E eu sei que me ama também, mas não podemos ficar juntos. Eu não quero isso para você. Eu o amo e não posso deixá-lo viver infeliz, de uma forma que vai me atormentar para sempre. Desculpe por tudo, mas não me procure mais.
Ele não tinha se virado ainda e eu fui saindo da cozinha. Não conseguia parar de chorar. Como tudo tinha se tornado esse inferno, do nada?
De repente, paro e lembro de algo.
Eu vou procurá-lo. Com um teste de DNA em mãos e... Eu não sei, Lucian. Não sei de quem é esse filho, as contas dos médicos podem estar erradas. E me sinto suja falando isso para você. Me sinto péssima perto de você, não tenho coragem de olhá-lo nos olhos depois de tudo o que lhe fiz. E o modo como você reagiu... Eu não posso mais ficar aqui.
Era duro não poder abraçá-lo, beijá-lo, tocá-lo. Uma despedida de forma errada. Mas continuo andando, respirando. Tentando viver.